Teria sido um enorme sucesso a Audiência Pública realizada em Ribeirão Preto, no dia 03/02/10, sobre alterações do Código Florestal Brasileiro, não tivesse sido ela uma Audiência Pública, mas sim um congresso ruralista ou ainda um comício político. Realizada sob o pressuposto de se levantarem informações e sugestões para compor uma proposta “equilibrada” de alteração do Código, segundo a Comissão Mista da Câmara dos Deputados, responsável pelo evento, a audiência foi tudo menos equilibrada. A mesa foi composta por deputados da Comissão (seis, se não me engano, dos quais cinco foram radicalmente contra o Código Florestal) e um outro número de representantes do alto escalão de associações do agronegócio brasileiro. Além desses, estiveram presentes também dez convidados para se pronunciar, entre pesquisadores, advogados e outros. O resultado aqui não foi menos tendencioso: oito falaram contra o Código Florestal e apenas dois se colocaram em favor.
Interessante mesmo foi a estratégia de discurso utilizada pelo grupo do agronegócio. Colocações já conhecidas, é verdade, mas que em conjunto demonstraram bem a retórica:
Primeiramente, apesar de a mesa ter sido composta principalmente de deputados ligados ao agronegócio e de representantes de associações ruralistas, como já dito, todos os discursos foram orientados para o pequeno produtor, como se esse fosse realmente o interesse por trás de tudo. O absurdo chegou ao ponto de se referirem à produção de maçã em Santa Catarina e, em nenhum momento, às grandes propriedades do país e os produtos que realmente têm alguma relevância em termos nacionais (cana, soja, carne etc) e seus métodos produtivos!
Em segundo lugar, do discurso ser condicionado a relacionar o agronegócio à “produção de alimentos”, sem qualquer alusão à cana-de-açúcar (cara para a nossa região), à soja e outros produtos de exportação, responsáveis pela ocupação de grande parte do território do estado e do Brasil.
Outras questões são também utilizadas, na mesma linha, como culpar o meio ambiente pelo não completo sucesso do agronegócio, desviar a atenção das questões ambientais do campo para as cidades, afirmar que o sucesso do agronegócio vai acabar com a fome do brasileiro e comparar a cobertura florestal do país com a da Europa, para reclamar o direito de acabar também com nossas florestas. A pobreza nas falas chegou a um estado tão grande que impediu qualquer reflexão sobre colocações coerentes que até surgiram em alguns raros momentos.
Quando os argumentos em favor das alterações do Código Florestal se acabavam (o que ocorria rapidamente nas falas individuais), iniciavam-se então os ataques aos “ambientalistas”. Os adjetivos utilizados pelos palestrantes, inclusive os próprios deputados, foram vários, entre os quais “bandidos”, “inocentes”, “infantis”, “ideólogos” e “manipulados”. Bandidos porque querem roubar as “pessoas de bem”, os “pequenos produtores de alimentos”; inocentes e infantis porque, quando crescerem e aprenderem, verão o mundo de outra forma; ideólogos porque, na verdade, os ruralistas não conhecem o real significado da palavra e acham que ideologia é uma qualidade ou defeito de quem contraria seus interesses e pensamento. Não conseguem ver sua própria posição como ideológica; e manipulados porque seus discursos e estratégias são determinadas por “ONGs internacionais que não respeitam os reais interesses brasileiros” (o que, inclusive desrespeita o brasileiro, porque indica que não temos senso crítico suficiente e não conseguimos pensar por nós mesmos). Frases que faziam a platéia ruralista, em pé, delirar. A ausência de conteúdo teve como alvo até o IBGE, considerado por um expositor como um órgão de pesquisa “ruim” (porque, é claro, contradiz as “verdades” ruralistas) e o Ministério Público, também a serviço das ONGs internacionais.
Ora, as frases de efeito e palavras de ordem utilizadas pelos ruralistas criaram um ambiente tão entorpecedor que impediram a audiência de reconhecer, por exemplo, que nenhuma grande empresa do agronegócio brasileiro é, de fato, brasileira (grandes empresas de sementes e agrotóxicos, laticínios e até usinas de açúcar e álcool). Assim, que interesse brasileiro estava sendo defendido por eles? Também, que o pequeno produtor, assim como o pequeno qualquer coisa no país, não é prioridade para ninguém. Não fosse isso verdade, não seriam tão mal remunerados pela tonelada da cana, a caixa de laranja e o litro do leite. Da mesma forma, que a fome do brasileiro vai continuar independentemente da produção do agronegócio, simplesmente porque essa produção jamais será direcionada a quem não pode pagar por ela.
Ao final do evento e decantado o mal estar causado pelo circo de horrores e pobreza da maioria das falas, duas sensações remanesceram, uma boa e uma ruim: a boa é que a esmagadora maioria dos argumentos ruralistas não se sustenta a pouco menos de dez minutos de uma conversa séria e aprofundada. A ruim, de que esses dez minutos jamais serão propiciados por essa Comissão Mista e suas audiências públicas.
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